Entre quais eu sou???

Assim como Clarice Lispector fez em A paixão segundo G.H, aqui não se busca responder quem sou, mas entre quais eu sou? Uma pergunta que envolve o sentido de nossa existência, que não é somente individual, mas que está baseado (e até determinado) na posição que ocupamos no mundo (classe, gênero, cor, em relação ao outro...), sobre o lugar da arte (é possível separar arte e vida?), o lugar que o Brasil ocupa no concerto das nações e sobre a questão do evangelho da graça x obras. Aqui há um espaço aberto para essas discussões! Leia, reflita e participe!



quarta-feira, 27 de agosto de 2008

O FOGO E A ÁGUA

No século IV A.C., nos limites da província de Lu, estendia-se o território governado pelo príncipe Chuang. Embora pequeno, o distrito havia prosperado bastante no reinado anterior à do príncipe. Mas, desde que Chuang assumiu o governo, o distrito estava empobrecendo.
Confuso, o príncipe Chuang foi à montanha de Han, buscar um pouco da sabedoria do grande mestre Mu-sun. Ao chegar à montanha, encontrou o mestre sentado calmamente sobre uma pequena pedra, a contemplar o vale. Depois de lhe explicar a situação, Chuang esperou, ansioso, que o mestre falasse. Mu-sun, porém, não disse uma só palavra. Deu apenas um pequeno sorriso e com um gesto convidou o príncipe a acompanhá-lo.
Silenciosamente, eles caminharam até que o Rio Tan Fu molhasse os seus pés. De tão largo que era o rio, a outra margem não podia ser vista.
Depois de meditar olhando as águas, Mu-sun preparou uma fogueira. Quando as labaredas já subiam altas, o mestre disse a Chuang que sentasse a seu lado. E ficaram ali, sentados, por longas horas, enquanto o fogo queimava, brilhante e forte. A noite veio e se foi.
Quando a aurora chegou, as chamas já não dançavam mais. Mu-sun apontou então para o rio e, pela primeira vez desde que o príncipe chegara, falou: “Agora você entende por que é incapaz de fazer como seu predecessor fez para sustentar a grandeza de seu distrito?”
Chuang olhou-o perplexo. Ele sabia agora tão pouco quanto antes e sentiu-se envergonhado. “Grande mestre”, ele disse, “desculpe minha ignorância, mas não consigo alcançar sua sabedoria.”
Mu-sun continuou: “Reflita, Chuang, sobre a natureza do fogo que queimava à nossa frente. Era forte e poderoso. Suas chamas subiam, dançavam e choravam, como se se vangloriassem de algo. Nenhuma grande árvore ou animal poderia igualar-se em força. Com facilidade poderia ter conquistado tudo a seu redor. Em contraste, Chuang, veja o rio. Começou como um pequeno fio nas montanhas distantes. Às vezes rolava macio, às vezes, rápido, mas sempre seguia em frente, tomando as terras baixas como seu curso. Contorna qualquer obstáculo e abraça qualquer fenda, tão humilde é sua natureza. A água dificilmente pode ser ouvida. Quando a tocamos, percebemos que ela dificilmente pode ser sentida, tão gentil é sua natureza.”
O príncipe, atento ao que o Mu-sun dizia, começava a compreender: “E no final o que sobrou daquilo que foi o fogo poderoso? Somente um punhado de cinzas. Por ser tão forte, Chuang, ele destrói tudo à sua volta, mas também se torna vítima. Ele se consome com sua própria força. O rio, não. Ele é calmo e quieto. Assim, ele vai rolando, crescendo, ramificando-se, tornando-se mais poderoso a cada dia em sua jornada em direção ao imenso oceano. Ele provê a vida e sustenta a todos.”
Depois de um momento de silêncio, Mu-sun voltou-se para o príncípe: “Da mesma maneira como na natureza, isso ocorre com os líderes. Há aqueles que são como o fogo, poderosos e autoritários. Há também os que são humildes como a água, donos de uma força interior de grande alcance e capazes de capturar o coração das pessoas. Aqueles não constroem. Este trazem uma primavera de prosperidade para sua províncias.”
E continuou o mestre: “Reflita, Chuang, sobre o tipo de líder que você é. Talvez a resposta para seus problemas esteja aí.”
Ao ouvir estas palavras, a verdade se acendeu no coração do príncipe. Chuang ergueu os olhos. Tendo deixado seu orgulho de lado, ele agora só via o nascer do sol, do outro lado do rio.

PODE REPETIR, POR FAVOR?


Há várias maneiras de ser compreendido. Ser claro é uma delas. Anônimo.



É impressionante (e triste…) encontrar tanta gente, hoje em dia, que fala mal e escreve pior ainda.
É um tal de “vou estar enviando” pra cá, “jente” pra lá, erros de concordância, “nóis fumo, nóis viemo, nóis peguemo e nóis compremo”. E ainda por cima, muitos trabalham com atendimento a Clientes…


Cheguei a conclusão que não preciso de nenhum Machado de Assis ou Eça de Queiroz trabalhando perto de mim, mas… encontrar um “jeca tatu” na minha frente, convenhamos, é dose!


Quem lê pouco ou lê mal, tem enormes dificuldades de expressão e vai ficar nessa de “vou estar enviando”…

Além do mais, ler “expande” a sua inteligência. Miguel de Cervantes, autor de Don Quixote de La Mancha, uma obra prima da literatura mundial, disse, sobre a leitura:


“Quem lê muito e anda muito, vai longe e sabe muito.”





quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Graça, graça, graça


Caminhando Jesus viu um homem cego de nascença. E os seus discípulos perguntaram: Mestre, quem pecou, este ou seus pais, para que nascesse cego? Respondeu Jesus: Nem ele pecou, nem seus pais; mas foi para que se manifeste nele a graça de Deus. (São João 9:1-7).

Ao ler esse versículo, lembro-me do caso de Jó. Os amigos de Jó o acusavam de ter pecado, por isso, sua situação tinha ficado como ficou, feia, vale a pena reler essas páginas, pois há ensinamentos importantes para nós. Pois no final, ficamos sabendo que havia um propósito celestial para aquilo ali.

Ora, quantas vezes estamos passando por uma situação, e chega alguém e diz: “Você está em pecado, por isso está acontecendo” ou “Você é incompetente, por isso nada acontece”... Enfim, sempre a culpa é sua. Ou seja, se você for bom então será bem-sucedido. Se vc for estudioso, trabalhador será próspero, se vc for espiritual e ir aos cultos vc será abençoado, encontrará um marido e etc.

O evangelho da graça vem se contrapor às obras. Pois se perseguimos as benções segundo as nossas obras, erramos duas vezes: 1) ao ter nosso sentido de vida voltado para o sucesso 2) e anulamos a cruz de Cristo, pois ao acharmos que merecemos alguma coisa boa, então não é pela misericórdia de Deus, mas por mérito humano.

A Bíblia diz: “Não por força ou poder, mas pelo meu Espírito” (Zc 4:6) e diz também “Quem quiser salvar a sua vida tem de perdê-la” (Mt 16, 25). O Senhor propõe duas coisas para nós: a sua GRAÇA, favor imerecido, para as situações que vão além dos nossos limites, e que Deus usa para manifestar a sua glória, e uma nova VIDA com outro sentido, horizonte, onde o foco é a rendição do nosso ser a Deus, no lugar onde encontramos o que precisamos para a nossa alma ficar satisfeita.

*E não precisamos de mais questionamento, confusão e culpa para nossa vida, precisamos somente da revelação de Deus, precisamos de graça, graça e mais graça.

M.P.

terça-feira, 12 de agosto de 2008

uma tentiva de fazer um conto clariciano

(In)significação

- E o beijo?

Um beijo é só um beijo.

É possível sentir algo mais ouvindo uma música. De fato saímos da realidade, somos arrebatados, subsumidos, nirvanizaniados? É possível sentir mais lendo um romance. É possível sentir mais e mais sentindo o mar... ouvindo música, lendo romance, sentindo mar, ouvindo um romance, lendo um mar, sentindo uma música, ouvindo o mar, lendo a música, sentindo o romance. Ou é possível sentir menos do que já se sentia? Até desaparecer. Menos, menos. Sem dúvida saímos da realidade ou quase. Quase.

Então devo sair da realidade? Inventar outra? Esquecer que se é bicho... Ou lembrar que se é bicho? Ou o problema é o fruir? Como fruir? Já que sou obrigada.

Um beijo romanceado é muito mais beijo. Mas só que ele não é beijo, é outra coisa. É um não palpável, é um não cheiro... Mas com muitas imagens, sensações e gostos. Porque o beijo mesmo tem gosto de beijo.

Sem sininhos, sem trilhas sonoras, sem imagens bonitas...

O beijo vem do latim basium, é o toque dos lábios com qualquer coisa, normalmente uma pessoa. Neste caso, o beijo na boca. Será um ato fisiológico, como dormir, comer, urinar? Quase. É um ato selvagem? Quase. Não é natural, porque há regras para beijar, há sentido no beijar, há civilização no beijar. Se bem que já há regras para tudo. Há pecados para tudo... Mas ainda é natural pela preparação automática do corpo para a coabitação, cruzamento, sexo, ou, sendo mais civilizada, fazer amor, 'fazer amor'... seja lá o que isso 'significa'.

O beijo é a assinatura. É a consumação ou a iniciação. É a certidão, o recibo. Prova de 'amor'? Freqüentemente. Prova de 'infidelidade'? Certamente.

Beijo é quase uma lembrança de alguma coisa, é quase uma tentativa de fugir, é quase um retorno... É mais, muito mais por ser menos, muito menos. E sacia alguma coisa. Beijo tem gosto de natureza. Beijo tem gosto do ser.

O beijo, com tanto peso da natureza, religião e sociedade, é uma marca, real e ilusória, mas uma marca, que não muda a vida.

Um beijo é só um beijo.

- Foi lindo! Aliás, toda a viagem foi linda. Tanto passeio incrível! Tanto lugar histórico para visitar. As praias... amo praias! Eu me perco naquela imensidão... E ele tão carinhoso, tão atencioso. Acho que ele gosta de mim... Até crise de ciúmes teve! Eu tinha conhecido um rapaz charmosinho dos arredores da cidade. Muito educado e bonito também. E ele não gostou. Mas a minha história mesmo foi com ele. Desde o começo já sentia o ar tenso... Contei que ele é comprometido? Mas, enfim, guardo de lembrança a seguinte imagem: um olhar brilhante como de coruja em noite chuvosa e lábios tão quentes... Quentes como o sol no deserto! Nunca vi uma pessoa arder tanto. E ele tinha chorado antes... Então eu o beijei e ele aceitou, e assim foi. Como nos filmes.

M.P.


segunda-feira, 11 de agosto de 2008

interesse em relações humanas

Ninguém é bom, senão um só, que é Deus (Marcos 10:17)


Em uma conversa sobre relacionamentos amorosos, eu dei a seguinte declaração:

“Acho que amamos somente quem precisamos”.


E foi chocante. Interessante que, quando digo isso, as pessoas que mais se chocam são exatamente aquelas que estão vivendo relações “interesseiras”, mas não querem ouvir isso. Ouvir a verdade dói. Ser denunciado dói. Descobrir que não somos tão bons assim dói. Então me disseram:

“É uma maneira cruel de se pensar, pois, se for assim, então não existe nada. E o amor aos filhos e a amizade?”


Eu falei outras barbaridades. Disse que havia relação de posse com o filho, porque ele é extensão sua (aliás, os pais desejam que sejam), logo o sucesso dele é o seu também. Amizade então nem se fala. Somos amigos de quem nos interessa, de quem precisamos. Logo, quando não há mais a necessidade, a tendência é o laço se afrouxar, e poucas lágrimas no velório...


Ora, uma vez Jesus disse que éramos maus. E ele estava certo. A natureza humana é má, embora seja capaz também de uns gestos caridosos quando for interessante...


Sendo assim, não acho que tudo está perdido, pois o Salvador que necessitamos já veio e nos ensinou: “Sem mim nada podeis fazer, mas estarei contigo até o fim dos dias” (Jo 15:1 e Mt 28:20).


Jesus nos ensinou a fazer o bem em silêncio, sem recompensa terrena. Ele nos ensinou a amar não somente os estranhos, mas os inimigos. Mas como? Pela morte do eu (da nossa natureza humana), para deixar Cristo viver no lugar de nós.


Assim, nós continuamos visando ser recompensados, mas uma recompensa diferente.


Temos a consciência de que agradamos a Deus e que o nosso galardão está no céu. Isso nos traz paz e nos faz melhores.


Nele, Jesus Cristo, que nos ama desde o princípio.

M.P.

Nesta Segunda, Leon Trotsky ...


“O capitalismo (...) preparou e, num certo sentido, realizou a universalidade e a permanência do desenvolvimento da humanidade. Por isto está excluída a possibilidade de uma repetição das formas de desenvolvimento de diversas nações. Forçado a se colocar a reboque dos países avançados, um país atrasado não se conforma com a ordem de sucessão (...)”. As sociedades menos desenvolvidas têm a possibilidade, ou, mais exatamente, são obrigadas a adotar certos traços avançados saltando as etapas intermediárias: “Os selvagens renunciam ao arco e flecha, para logo tomarem os fuzis, sem percorrer a distância que separava, no passado, estas diferentes armas. (...) O desenvolvimento de uma nação historicamente atrasada conduz, necessariamente, a uma combinação original das diversidades. A órbita descrita
toma, em seu conjunto, um caráter irregular, complexo, combinado
”.


Este trecho é uma reflexão de Leon Trotsky (Histoire de la révolution russe, Paris, Seuil, 1962, pp. 20-21.) que encontrei num texto de Michael Löwy.


A questão é: é possível regular este atraso histórico com movimentações sociais e educacionais?

Leia o texto inteiro em: http://www.revistaoutubro.com.br/edicoes/01/out01_06.pdf

quarta-feira, 16 de julho de 2008

IX Congresso Internacional da ABRALIC

Gente, este é o Congresso no qual a Marcela está!

Ocorreu de 13 a 17 de Julho na FFLCH/USP. Assim que ela voltar, nos contará um pouco do que assistiu lá! Ela está animada, então imagino que foi muito produtivo!

Para quem participou:
  • Data limite para alterações e envio dos textos integrais para publicação nos Anais: 15/08/2008
  • Liberação dos Certificados aos participantes em todas as categorias: 30/08/2008
  • Publicação dos Anais do Congresso em formato digital, na homepage da ABRALIC: 30/09/2008

Para saber mais, acesse: http://www.abralic.org

quinta-feira, 10 de julho de 2008

Sociedade do espetáculo

Nosso tempo, sem dúvida . . . prefere a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser. . . O que é sagrado para ele não passa de ilusão, pois a verdade está no profano. Ou seja, à medida que decresce a verdade a ilusão aumenta, e o sagrado cresce a seus olhos de forma que o cúmulo da ilusão é também o cúmulo do sagrado.

Feuerbach

Otimismo....


"Viver, e não ter a vergonha de ser feliz..."

Ainda que a minha alegria seja um choque!
Eu quero é dar gargalhadas, cara a cara com a hipocrisia
de quem jura ser o que nem de longe o é!

O capitalismo como religião

MICHAEL LÖWY

Entre os documentos inéditos de Walter Benjamin [1892-1940] publicados em 1985 por Ralph Tiedemann e Hermann Schweppenhäuser no volume 6 de "Gesammelte Schriften" (Suhrkamp Verlag), há um particularmente obscuro, mas que parece de uma atualidade surpreendente: "O capitalismo como religião". São três ou quatro páginas contendo anotações e referências bibliográficas; denso, paradoxal, às vezes hermético, o texto não se deixa decifrar facilmente. Como não se destinava à publicação, o autor não tinha qualquer necessidade de torná-lo legível e compreensível... Os comentários a seguir são uma tentativa parcial de interpretação, baseada mais em hipóteses do que em certezas, e deixando de lado certas "zonas de sombra".

O texto de Benjamin é, com toda evidência, inspirado por "A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo" (Cia. das Letras, 2004), de Max Weber [1864-1920]. No entanto, como veremos, o argumento de Benjamin vai muito além de Weber e, sobretudo, substitui sua abordagem "axiologicamente neutra" (Wertfrei) por um fulminante requisitório anticapitalista.

"É preciso ver no capitalismo uma religião". Com essa afirmação categórica começa o fragmento. Segue-se uma referência, mas também um distanciamento em relação a Weber: "Demonstrar a estrutura religiosa do capitalismo -isto é, demonstrar que ele é não somente uma formação condicionada pela religião, como pensa Weber, mas um fenômeno essencialmente religioso- nos levaria ainda hoje pelos meandros de uma polêmica universal desmedida".

Benjamin continua: "Podemos entretanto, desde já, reconhecer no tempo presente três traços dessa estrutura religiosa do capitalismo". Benjamin não cita mais Weber, mas de fato os três pontos se alimentam de idéias e argumentos do sociólogo, dando-lhes um novo alcance, infinitamente mais crítico, mais radical -social e politicamente, mas também do ponto de vista filosófico (teológico?)- e perfeitamente antagônico à tese weberiana da secularização.

O culto

"Primeiramente, o capitalismo é uma religião puramente cultual, talvez a mais extremamente cultual que já existiu. Nada nele tem significado que não esteja em relação imediata com o culto, ele não tem dogma específico nem teologia. O utilitarismo ganha, desse ponto de vista, sua coloração religiosa."

Portanto, as práticas utilitárias do capitalismo -investimento do capital, especulações, operações financeiras, manobras bolsistas, compra e venda de mercadorias- são equivalentes a um culto religioso. O capitalismo não exige a adesão a um credo, a uma doutrina ou a uma "teologia"; o que conta são as ações, que representam, por sua dinâmica social, práticas cultuais. Benjamin, contradizendo um pouco seu argumento sobre a Reforma e o cristianismo, compara essa religião capitalista ao paganismo original, também ele "imediatamente prático" e sem preocupações "transcendentes".

Mas o que é que permite assemelhar essas práticas econômicas capitalistas a um "culto"? Benjamin não o explica, mas utiliza, algumas linhas depois, o termo "adorador"; podemos assim considerar que o culto capitalista comporta certas divindades que são objeto de adoração. Por exemplo: "Comparação entre as imagens de santos das diferentes religiões e as notas de dinheiro dos diversos países". O dinheiro, em forma de papel-moeda, seria assim o objeto de um culto análogo ao dos santos das religiões "comuns".

No entanto, o papel-moeda é apenas uma das manifestações de uma divindade mais fundamental no sistema capitalista cultual: o "dinheiro", o deus Mammon, ou, segundo Benjamin, "Plutão... deus da riqueza". Na bibliografia do fragmento é mencionada uma passagem virulenta contra o poder religioso do dinheiro: está no livro "Aufruf zum Sozialismus", do pensador anarquista judeu-alemão Gustav Landauer, publicado em 1919, pouco antes do assassinato de seu autor por militares contra-revolucionários. Na página indicada pela nota bibliográfica de Benjamin, Landauer escreve:

"Fritz Mauthner ("Wörterbuch der Philosophie") mostrou que a palavra "Deus" (Gott) é originariamente idêntica a "ídolo" (Götze), e que as duas querem dizer "o fundido" [ou "o escorrido'] (Gegossene). Deus é um artefato feito pelos humanos, que ganha uma vida, atrai para si as vidas dos humanos e finalmente torna-se mais poderoso que a humanidade. O único escorrido (Gegossene), o único ídolo (Götze), o único Deus (Gott) a que os humanos deram vida é o dinheiro (Geld). O dinheiro é artificial e é vivo, o dinheiro produz dinheiro e mais dinheiro, o dinheiro tem todo o poder do mundo. Quem não vê, quem ainda hoje não vê, que o dinheiro, que o Deus não é outra coisa senão um espírito oriundo dos seres humanos, um espírito que se tornou uma coisa (Ding) viva, um monstro (Unding), e que ele é o sentido (Sinn) que se tornou louco (Unsinn) de nossa vida? O dinheiro não cria riqueza, ele é a riqueza; ele é a riqueza em si; não existe outro rico além do dinheiro".

É verdade que não podemos saber até que ponto Benjamin compartilhava esse raciocínio de Landauer; mas podemos, a título de hipótese, considerar esse trecho, mencionado na bibliografia, como um exemplo do que ele entende por "práticas cultuais" do capitalismo.

Sem trégua

A segunda característica do capitalismo "está estreitamente ligada a essa concreção do culto: a duração do culto é permanente". "O capitalismo é a celebração de um culto "sem trégua e sem piedade". Não há "dias comuns", nenhum dia que não seja de festa, no sentido terrível da utilização da pompa sagrada, da extrema tensão que habita o adorador."

Sem descanso, sem trégua e sem piedade: a idéia de Weber é retomada por Benjamin, quase literalmente; não sem ironia, aliás, evocando o caráter permanente dos "dias de festa": na verdade, os capitalistas puritanos aboliram a maioria dos feriados católicos, considerados um incentivo ao ócio. Portanto, na religião capitalista, cada dia vê a mobilização da "pompa sagrada", isto é, os rituais na bolsa ou na fábrica, enquanto os adoradores seguem, com angústia e uma "extrema tensão", a subida ou a descida das cotações das ações.

As práticas capitalistas não conhecem pausa, elas dominam a vida dos indivíduos da manhã à noite, da primavera ao inverno, do berço ao túmulo. Como bem observa Burkhardt Lindner, o fragmento empresta de Weber o conceito do capitalismo como sistema dinâmico, em expansão global, impossível de deter e do qual não podemos escapar.

Enfim, a terceira característica do capitalismo como religião é seu caráter culpabilizador: "O capitalismo é provavelmente o primeiro exemplo de um culto que não é expiatório (entsühnenden), mas culpabilizador". Benjamin continua seu requisitório contra a religião capitalista: "Nisso, o sistema religioso é precipitado em um movimento monstruoso. Uma consciência monstruosamente culpada que não sabe expiar se apodera do culto, não para nele expiar essa culpa, mas para torná-la universal, para fazê-la entrar à força na consciência e, enfim e sobretudo, para implicar Deus nessa culpa, para que no fim das contas ele mesmo tenha interesse na expiação".

Benjamin evoca, nesse contexto, o que chama de "ambigüidade da palavra Schuld" - isto é, ao mesmo tempo "dívida" e "culpa". Segundo Burkhard Lindner, a perspectiva histórica do fragmento baseia-se na premissa de que não podemos separar, no sistema da religião capitalista, a "culpa mítica" da dívida econômica.

Encontramos em Max Weber dois raciocínios análogos, que também jogam com os dois sentidos de "dever": para o burguês puritano, "o que consagramos a fins "pessoais" é "roubado" do serviço à glória de Deus"; tornamo-nos assim ao mesmo tempo culpados e "endividados" em relação a Deus. "A idéia de que o homem tem "deveres" para com as posses que lhe foram confiadas e às quais ele está subordinado como um intendente devotado (...) pesa sobre sua vida com todo o seu peso gélido. Quanto mais aumentam as posses, mais pesado torna-se o sentimento de responsabilidade (...) que o obriga, para a glória de Deus (...), a aumentá-las por meio de um trabalho sem descanso". A expressão de Benjamin "fazer a culpa entrar à força na consciência" corresponde bem às práticas puritanas/capitalistas analisadas por Weber.

Amplitude

Mas parece-me que o argumento de Benjamin é mais geral: não é somente o capitalismo que é culpado e "endividado" com seu capital -a culpa é universal. Assim, o próprio Deus encontra-se envolvido nessa culpa geral: se os pobres são culpados e excluídos da graça, e se, no capitalismo, eles estão condenados à exclusão social é porque "é a vontade de Deus" ou, o que é seu equivalente na religião capitalista, a vontade dos mercados.

Bem entendido, se nos situarmos no ponto de vista desses pobres e endividados, é Deus que é o culpado, e com ele o capitalismo. Em qualquer dos casos, Deus está inextricavelmente associado ao processo de culpabilização universal.

Até aqui vimos bem o ponto de partida weberiano do fragmento, em sua análise do capitalismo moderno como religião originária de uma transformação do calvinismo; mas há um trecho em que Benjamin parece atribuir ao capitalismo uma dimensão transhistórica que não é mais a de Weber -e tampouco de Marx: "O capitalismo se desenvolveu no Ocidente como um parasita do cristianismo -devemos demonstrá-lo não somente a propósito do calvinismo, mas também das outras correntes ortodoxas do cristianismo-, de tal sorte que no fim das contas a história do cristianismo é essencialmente a de seu parasita, o capitalismo".

O resultado do processo "monstruoso" de culpabilização capitalista é a generalização do "desespero": "Ele está ligado à essência desse movimento religioso -que é o capitalismo- de perseverar até o fim, até a completa culpabilização final de Deus, até um estado do mundo atingido por um desespero que ainda "esperamos" que seja justo. O que o capitalismo tem de historicamente inédito é que a religião não é mais reforma, mas a ruína do ser. O desespero se estende ao estado religioso do mundo do qual se deveria esperar a salvação".

Não estamos distantes, aqui, das últimas páginas da "Ética Protestante", em que Weber constata, com um fatalismo resignado, que o capitalismo moderno "determina, com uma força irresistível, o estilo de vida do conjunto dos indivíduos nascidos nesse mecanismo -e não somente daqueles que a aquisição econômica concerne diretamente".

Ele compara essa coerção a uma espécie de prisão na qual o sistema de produção racional de mercadorias encerra os indivíduos: "Segundo as opiniões de Baxter, a preocupação pelos bens externos não deveria pesar sobre os ombros de seus santos senão como "um leve manto que a qualquer momento se pode retirar". Mas a fatalidade transformou esse manto em uma jaula de aço".

De Weber a Benjamin nos encontramos em um mesmo campo semântico, que descreve a lógica impiedosa do sistema capitalista. Mas por que ele é produtor de desespero?

Sendo a "culpa" dos humanos, seu endividamento para com o capital, perpétua e

crescente, nenhuma esperança de expiação é permitida. O capitalista deve constantemente aumentar e ampliar seu capital, sob pena de desaparecer diante de seus concorrentes, e o pobre deve emprestar dinheiro para pagar suas dívidas.

Segundo a religião do capital, a única salvação reside na intensificação do sistema, na expansão capitalista, no acúmulo de mercadorias, mas isso só faz agravar o desespero. É o que parece sugerir Benjamin com a fórmula que faz do desespero um estado religioso do mundo "do qual se deveria esperar a salvação".

Este texto é uma versão editada da conferência de Michael Löwy na USP no dia 29 de setembro.

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.

Publicado em:

Folha de São Paulo, Caderno Mais, domingo, 18 de setembro de 2005